Alba (Itália) – Desde o início da pandemia, a rotina das cadelas Macchia e Perla não mudou em nada. No ano passado, quando o outono chegou, tingindo de amarelo as folhas das árvores da pequena aldeia rural de Catena Rossa, no Piemonte, elas saíam todas as noites com o dono, o tartufaio Michele Bertolusso, enquanto a maioria da população da Itália se mantinha confinada a partir das 22h.
Os bares e danceterias estavam fechados, mas os bosques escuros da região de Alba, no noroeste italiano, tinham uma curiosa e impressionante vida noturna: homens com lanternas seguindo seus cães pelo breu das árvores para tentar dar seguimento a seus negócios secretos (e lucrativos).
As cadelas de Bertolusso, da raça Lagotto Romagnolo, sabiam o que tinham que farejar: as cobiçadas e caras trufas brancas, consideradas a maior e mais cara iguaria da gastronomia mundial.
Estes raros tubérculos que crescem sob a terra em simbiose com árvores como o carvalho e o choupo são encontrados por cães habilmente treinados –como Macchia e Perla–, que farejam o aroma pungente da trufa (entre o terroso e algo de alho cru) em troca de alguns biscoitos.
Com os restaurantes já em atividade por todo o país –e, felizmente, pelo mundo, mantendo um comércio internacional que gera cerca de 400 milhões de euros– este ano elas têm tido bastante trabalho.
Em um final de manhã nublada em novembro passado, Macchia escavava o solo enquanto abanava o rabo, acompanhada por uma atenta plateia de 23 pessoas.
Mais uma trufa, desta vez uma negra, bem pequena, para descontentamento da torcida. Sem pensar, Bertolusso a coloca no bolso: mesmo as mais diminutas têm seu (alto) valor.
Todos os anos, a partir do mês de outubro, quando do início da temporada, compradores e (cada vez mais) curiosos enchem a pequena cidade de Alba e suas imediações para acompanhar a caça das trufas –e depois comê-las nos restaurantes da região, onde são servidas em lascas sobre tajarin com manteiga ou ovos fritos.
A tal caça, porém, pode ser um pouco frustrante para os mais românticos, que esperam alguma adrenalina na busca das pepitas de fungo. Turistas e visitantes quase só acompanham as “caças” em áreas restritas por cercas em propriedades privadas, onde os cães não têm grande dificuldade em encontrá-las.
“Pouca gente sabe, mas existem formas de dar um empurrãozinho para o desenvolvimento das trufas”, afirma Paulo Montanaro, proprietário da Tartuflanghe, empresa familiar que trabalha com mais de 300 caçadores de trufas em Langhe, no sul do Piemonte.
Da pulverização de esporos dos fungos nas raízes das árvores até o abaulamento dos terrenos mais baixos para garantir maior concentração de umidade, muitas técnicas têm sido empregadas para aumentar a produção das trufas. Em uma delas, a simples poda das árvores ajuda com que os nutrientes sejam direcionados para as raízes onde o fungo vive em simbiose.
“O ser humano desenvolveu diversos procedimentos para cultivar seus alimentos, que é o que fazemos com as trufas. Utilizamos recursos naturais com alguma tecnologia para acelerar um pouco as coisas que levariam mais tempo na natureza”, diz.
O conhecimento científico tem mudado muito a forma de conseguir os preciosos fungos. Nos 20 hectares de bosques que a empresa mantém entre as regiões do Langhe Roero e Monferrato, termômetros de alta precisão também entraram em campo para medir a atividade do micélio (o conjunto de filamentos desenvolvidos dos fungos) embaixo da terra –um indicativo de trufas a serem exploradas.
Parecidos com os equipamentos que passaram a ser comuns nas entradas de shoppings e estabelecimentos comerciais, em vez de só a temperatura, a pequena tela mostra faixas de cor entre o verde e o vermelho para identificar onde as cobiçadas iguarias podem estar escondidas.
O engenheiro agrônomo Enrico Vidale, da Universidade de Pádua, aponta para o solo onde corre a pequena Perla, para mostrar que o olfato da cadela parece estar bem afinado.
“Em um bosque normal, seria impossível medir toda essa atividade. Aqui, por conta das técnicas empregadas, podemos ver melhor o micélio em ação, o que indica mais trufas e nos ajuda onde buscar”, ele explica.
Isso significa que os tradicionais cães podem ser substituídos no futuro, pelo menos em propriedades particulares, onde a produção é cultivada. No caso das trufas que nascem de forma espontânea (a maioria), os animais farejadores ainda são a melhor garantia de algum sucesso por parte dos caçadores de trufas.
Saques e envenenamentos
Muitos deles, porém, estão cada vez mais decididos a abandonar a profissão. O mercado lucrativo e extremamente concorrido tem se tornado cada vez mais difícil para as centenas de tartufai de Alba. Muitos caçadores invadem a propriedade de outros e “saqueiam” a terra em busca dos tubérculos valiosos.
Em uma das cenas do documentário “The Truffle Hunters”, lançado no ano passado, que mostra em detalhes o mundo fascinante e perigoso das trufas, um caçador explica a um policial que seu cão de caça foi envenenado –muito provavelmente por um concorrente.
“Sabe por que não saio mais? Porque são todos gananciosos. Não entendem nada da floresta, querem saqueá-la”, diz outro ex-caçador, convencido a não voltar às caçadas. “Não há mais respeito, não há mais tradição, o mercado mudou muito”, lamenta.
Na Feira Internacional da Trufa Branca de Alba, realizada há 89 anos na cidade, o setor, entretanto, segue prolífico. Uma trufa de 900 gramas foi vendida por impressionantes 103 mil euros há duas semanas, para o delírio dos turistas e produtores presentes.
O valor é um impulso para o evento realizado anualmente entre outubro e dezembro, que não raro tem colecionado alguns leilões excepcionais com seis dígitos nos últimos anos. A “peça” foi vendida a um restaurante em Hong Kong. Ao que parece, no mundo do “ouro branco”, nem tudo mudou tanto assim.
Passeios
Viator: viator.com
€ 119 (por 3 horas)
Tartuflanghe: tartuflanghe.com
A partir de €90
Fonte: Rafael Tonon / Folhapress